Pobrezinha da Língua Portuguêsa

(...)
Uma piada de português
Quinta-feira, 13 de dezembro. Hora do almoço. O chofer da camionete do deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP), trajando seu paletó azul e sua gravata vermelha, encontra seu irmão caçula no restaurante. O garçom traz o menu. Alisando seu bigode, Aldo pede bife de filé no capricho, com purê de batata e, de entrada, salada de maionese com tomate e azeitona. Enquanto come, discute a guerra da CPMF e a crise política. No final, toma o indispensável cafezinho bem brasileiro e vai embora, depois de fazer um brinde, festejando a aprovação do projeto de lei contra os estrangeirismos.
As palavras restaurante, garçom, menu, filé, maionese, purê, conhaque e champanhe foram roubadas do francês que, como todo mundo sabe, adora comer e beber e, além disso, exportou para nós milhares de galicismos como chofer, camionete, garagem, hotel. Aldo não pode degustar a culinária francesa, muito menos a batata cultivada em chácara, duas palavras quechuas. Salada de tomate, nem pensar, é vocábulo nahuátl do México, tanto quanto chocolate. Bife é inglês e, se for no capricho, é coisa de italiano. Azeitona é árabe. Nem suco de abacaxi ou caju – palavras tupis – ele poderá beber. Suprime até o cafezinho, que todo mundo pensa que é brasileiro, mas é palavra árabe – qáhwa, exportada para a Turquia, onde virou kahvé e de lá, em 1655, para a Itália, mudando para caffé, sendo então repassada para nós.
O deputado, faminto e com sede, encontra dificuldades em se vestir. Coerente com a defesa da língua portuguesa, tira o paletó, tão francês quanto o sutiã, mas não pode substituí-lo por short, jeans e tênis comprados no shopping, porque são anglicismos. Não pode ficar de camisa, porque se trata de uma palavra celta. O pijama é descartado, porque vem do hindustani, falado na índia. Só de cueca e gravata vermelha, Aldo pode ser cassado por falta de decoro, como o deputado Barreto Pinto, que no final dos anos 1940 posou de fraque e cueca para a revista Cruzeiro.
Mas nem a gravata vermelha ele pode usar: gravata é crovatta, denominação dada pelos italianos aos croatas, inventores da dita cuja, e vermell foi trazida em 1380 do Oriente Médio por marinheiros catalães. Por isso, Aldo procura roupa alternativa costurada artesanalmente, mas descobre que alfaiate é estrangeirismo, um empréstimo do árabe, de onde também vem a cor azul do seu terno abandonado e vocábulos como almofada, xadrez, tarefa, laranja, guitarra e tantos outros. O deputado, então, só tem uma saída para manter sua fidelidade à pureza da língua portuguesa: ficar nuzão como os índios Tupi.
Nu, faminto, desesperado e com sede, Aldo tenta conversar com o irmão, mas omite sua condição de caçula, estrangeirismo proveniente de língua africana igual a milhares de outros como vatapá, samba, cafuné, bagunça, moleque, bunda. Não pode discutir política, nem expor sua tese sobre a crise ou defender a democracia, porque são quatro termos gregos. Não pode falar da guerra (werra), nem mesmo fazer um brinde (bring dir´s – eu te ofereço), que são germanismos. Aldo, então, é obrigado a ficar mudo como o ex-deputado amazonense Lupércio Ramos ficou durante todo seu mandato.
Mudo, despido, faminto e com sede, o autor do projeto, contrariando a doutrina social que professa, demite seu motorista, por não poder chamá-lo pelo apelido: Malandro é um italianismo como festejar e carnaval. Já a palavra Carioca, de origem tupi, foi incorporada com milhares de outras ao português do Brasil. Aldo, finalmente, cofia o bigode, mas é advertido que alisar é um termo de língua celta e bigode vem do alemão (bei got – por Deus). Por Deus, Aldo raspa seu bigode. Tudo pela pureza do português!
--------------------------------------------------------------
A língua não vai deixar de ser portuguesa, por causa de palavras importadas. Ela continua pertencendo às comunidades que as falam e que sabem defendê-la.
A Comissão de Educação e Cultura, indo num sentido contrário ao de Aldo Rebelo, se reunia em outro auditório da Câmara de Deputados, em Brasília, para discutir relatório sobre a Diversidade Lingüística do Brasil, onde são falados mais de 200 idiomas.
A Comissão de Educação e Cultura, indo num sentido contrário ao de Aldo Rebelo, se reunia em outro auditório da Câmara de Deputados, em Brasília, para discutir relatório sobre a Diversidade Lingüística do Brasil, onde são falados mais de 200 idiomas.
A diversidade lingüística é um patrimônio da humanidade, que deve ser – esse sim – defendido com unhas e dentes. No Brasil, essa riqueza toda é representada pelas línguas indígenas, pelas línguas das comunidades afro-brasileiras e dos imigrantes estrangeiros, pela Língua de Sinais (LIBRAS), mas também pelas variedades dialetais da língua portuguesa. O IPHAN, que vai fazer um inventário desses falares, propôs a criação do Livro de Registro das Línguas para garantir o direito dos falantes e documentar esse patrimônio de natureza imaterial.

Síntese com algumas adaptações do texto de José Ribamar Bessa Freire, publicado originalmente no Diário do Amazonas.