segunda-feira, 5 de maio de 2008

RESENHA JURÍDICA: Células-tronco, Anencefalia e Dignidade da Pessoa Humana.

A riqueza de conteúdo do termo “vida” torna difícil apreender seu sentido em um só significativo. Dado isso, cabe ao analisar a vida, como objeto de direito, que se a tome como um processo vital , composto elementos físicos, psíquicos e espirituais, sendo o bem maior a ser tutelado pelo Direito.
O Profº Luís Roberto Barroso em seu Artigo “Gestação de Fetos Anencefálicos e Pesquisas com Células-tronco: Dois Temas Acerca da Vida e da Dignidade na Constituição” traz uma reflexão concisa e inquietante sobre as temáticas do direito à vida e da dignidade da pessoa humana. Sua abordagem se faz ainda mais instigante em face de terem como parâmetro de análise duas recentes ações judiciais, em curso no STF. As referidas ações são a ADPF nº 54, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, onde se traz a tona a questão legitimidade ou não da interrupção de gravidez quando se trate de fetos anencefálicos, pleiteando que as normas do Código Penal referentes ao aborto sejam interpretadas conforme a Constituição, de modo que seja declarada sua não incidência em casos de antecipação terapêutica do parto em hipóteses de gestação de feto anencefálico; a outra ação a que o autor se propõe a discutir é a ADI nº 3.510, proposta pelo Procurador-Geral da República, em que é discutida a constitucionalidade ou não da Lei nº 11.105/2005, a Lei de Biossegurança, que estabelece a disciplina das pesquisas com células-tronco de embriões, requerendo-se a declaração de inconstitucionalidade do texto integral do art. 5º da lei, para que tais pesquisas sejam consideradas ilegítimas.
A anencefalia, em termos médicos, é a “má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e córtex, havendo apenas resíduo de tronco encefálico”, afirma Luís Roberto Barroso. Neste ínterim, inexistem controvérsias quanto à fatalidade da anomalia, numa proporção de 100% dos casos, pois não há qualquer possibilidade de tratamento ou reversão do quadro. Por outro lado, a manutenção do feto anômalo é potencialmente perigosa para a gestante, uma vez que são altas as estatísticas de morte intra-útero destes fetos, causando danos à saúde da mãe e até perigo de vida. Portanto, a indicação terapêutica médica é a antecipação do parto.
Num outro contexto, as pesquisa com células embrionárias podem resultar na descoberta da cura de uma série de doenças, tais como as atrofias progressivas, as distrofias musculares, a esclerose lateral amiotrófica, as doenças de neurônio motor, a diabetes, o mal de Parkinson, síndromes diversas e uma série de outras doenças. Em todo mundo muitas são as pessoas afetadas por estas doenças, sendo que só no Brasil entre 3%e 15% da população têm doenças genéticas. Além disso, a diabetes afeta entre 10 e 15 milhões de pessoas.
Em que pese este debate ter fortes implicações éticas, principalmente no que concerne ao direito à vida e a dignidade da pessoa humana, a tese defendida pelo autor neste artigo é a de que tanto a antecipação terapêutica do parto em casos de fetos anencefálicos quanto nas pesquisas com células-tronco embrionárias inexiste violação ao direito à vida e à dignidade da pessoa humana.
Nessa linha de pensamento, aborda-se o que o autor chama de “desacordo moral razoável” em relação ao reconhecimento ou não de uma linha que separe o óvulo fertilizado da pessoa humana. As principais posições teóricas são a de que a vida humana começa: a) com a fecundação; b) com a nidação; c) quando o feto passa a ter capacidade de existir sem a mãe (entre a 24ª e a 26ª semanas de gestação); d) quando da formação do Sistema Nervoso Central. E há quem defenda que a vida começa quando da formação de uma consciência moral.
Desse modo, ao se perguntar então sobre a postura ética ideal nesta situação (de pluralidade e diversidade) percebe-se que qualquer atrelamento a dogmatismos ou positivos impensados é, no mínimo, incompatível com o regime democrático que norteia o Direito Brasileiro. Por isso, defende o autor a tese de que, nestas circunstâncias, a antecipação terapêutica do parto oferecerá à gestante a faculdade de decidir se quer levar a termo ou não uma gestação inviável. Mesma faculdade que se oferece aos genitores pela Lei de Biossegurança ao estabelecer a necessidade, em qualquer caso do “consentimento dos genitores”. Ao mesmo tempo, a Lei de Biossegurança vedou comportamentos condenados pela comunidade científica internacional, como a clonagem e a eugenia. Bem como, ao vedar e criminalizar a comercialização de material biológico, põe fim ao temor da criação de um mercado de embriões e tecidos humanos.
Mas, do ponto de vista jurídico, estas hipóteses, conforme o autor, são de simples resolução. Quanto à Antecipação terapêutica de feto anencefálico seus argumentos são os seguintes:
1. A antecipação terapêutica do parto não é aborto, logo, a conduta é atípica e não deve ser punida;
2. Ainda que se considerasse a antecipação terapêutica como aborto, a partir de uma Interpretação evolutiva do Código Penal, não seria conduta punível;
3. Sendo a questão interpretada conforme a Constituição e o princípio da dignidade da pessoa humana, a situação da mãe é análoga à tortura. Logo, ao invés de ser punida, deve-se, isto sim, permitir a antecipação terapêutica do parto.
Já em relação à Constitucionalidade e Legitimidade das Pesquisas com células-tronco embrionárias, seguem alguns argumentos do autor:
1. Inexiste violação ao direito à vida, já que, conforme o próprio Código Civil (art. 2º) é só a partir do nascimento com vida que surge a pessoa humana. Embora se resguarde os direitos do nascituro, este é definido como o ser humano já concebido, do qual se tem como fato certo o nascimento. Assim, o embrião inviável, que por isso não foi transferido para o útero materno não é pessoa, e nem sequer nascituro, posto que dele não se espera o nascimento como fato certo. Mais que isso, se pela lei, a vida acaba quando o SNC pára de funcionar, a vida só teria início quando este se formasse ou começasse a se formar.
2. Sobre a dignidade, se o embrião não é pessoa, não há que se fala em violação à dignidade humana;
3. E, conforme o próprio Luís Roberto Barroso,“[...] se os embriões não virão, de qualquer forma, a se tornar seres humanos, não haveria por que deixar de atribuir à sua curta existência um sentido nobre, que é o de promover a vida e a saúde de outras pessoas.” (p. 108)
Embora os argumentos favoráveis às questões em tela não se limitem aos supracitados, o autor os apresenta com a clareza e simplicidade que são próprias do seu estilo, trazendo à tona questões de extremada relevância para o Direito Constitucional.
Depreende-se de seu pensamento e do desenvolvimento científico e tecnológico que se apresentam ao mundo atual, que o Direito não pode ser ortodoxo ao ponto de manter posturas rígidas e cegas sobre antigas questões (o direito à vida e o respeito à dignidade da pessoa humana) que se apresentam com novas feições, diante das Cortes para serem julgadas, mas que não oferecem violações ao ordenamento jurídico .
Portanto, em questões difíceis, hard cases, como estes, a única alternativa sensata e em acordo com a Carta Magna Brasileira é a ponderação de interesses e o reconhecimento da não violação do direito à vida e do respeito à dignidade da pessoa humana.

BIBLIOGRAFIA

BARROSO, Luís Roberto. Gestação de Fetos Anencefálicos e Pesquisas com Células-tronco: Dois Temas Acerca da Vida e da Dignidade na Constituição. In CAMARGO, Marcelo Novelino (org.). Direito Constitucional: Leituras Complementares. Salvador: JusPOIVM, 2006.

_______. O direito constitucional e a efetividade de suas normas, limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1993.